Hoje sem mentiras. Ao menos não agora. O dia já está quase no fim. Só está você e o computador. Não há porque contar histórias. Ou melhor,até há. Dizer a verdade pra si mesmo é crime com requintes de crueldade. Hediondo mesmo.
Então você chega em casa, abre a porta, toma um banho e liga a TV. Alguém fala alguma coisa. A resposta é sempre a mesma, talvez apenas uma interjeição. Pouco do mundo lhe interessa. Você parece não ser dali. Alguém roubou sua identidade, o número do seu RG. Na verdade foi você quem perdeu e não conhece nada que possa ajudar a recuperá-lo. A única saída é tirar outra. Alguns parentes e amigos ajudam. Dizem que você é responsável, humano, amigo, bem humorado, sexy e também que não parece ter a idade que tem.Você aceita. Pra quem não tem nada, até que não parece mal. E você assume este papel, este personagem. Luzes, câmera, ação.A vida segue e você junto com ela. Todos dizem que você é uma companhia maravilhosa, divertidíssima, especial. Uau! Não poderia ser melhor. Alguns caras te acham bonitinha, isso é bom. Você é legal, interessante. A vida está bem mais gostosa agora. Aliás, como era antes mesmo? Há uma luta interna gigantesca para acreditar que o hoje é muito melhor do que o ontem. É minha rainha, eu te vejo menosprezar tudo o que você viveu.Chega a ser patético. Gorda, dependente, iludida, preterida, infeliz, amélia, sem personalidade.Quantas vezes você já disse isso querendo se convencer? Um milhão! Quantas conseguiu? Nenhuma. Se você passar outros 30 e tantos anos tentando não conseguirá. Não é verdade. É a nova identidade que você vem tentando decorar.Que engana o mundo, menos a si mesma.
Vamos voltar a ser criança. Proponho uma brincadeira.Um faz de conta. E se houvesse uma máquina do tempo capaz de te fazer voltar atrás? Não é pra pedir perdão, se humilhar, a ideia não é essa. É só a de viver novamente. Você pode voltar 10 anos atrás, 7 meses, ou mesmo 5 horas. O que você faria de diferente? Posso arriscar? Deixe-me ver. Não teria dito tanta besteira, não é? Não teria desistido, não entregaria os pontos. Seria mais carinhosa, participativa. Teria se divertido mais. Teria dado mais cor a vida, feito juras de amor eterno, seria mais compreensiva. Teria feito menos fotos que evitassem essa tortura de hoje. Teria achado graça de como ele cantava tão mal e tocava tão bem aquele bendito instrumento, que antes era maldito, porque antes você era implicante. Não teria espaço pra ciúmes e vocês teriam viajado mais, muito mais. Teria reparado o quanto ele era feliz ao seu lado. Aquele filho prorrogado tantas vezes já teria nascido e você também teria feito aquela reforma da cozinha. Acho que o final teria sido mais feliz. Muitos dos seus sonhos não teriam morrido. Talvez você envelhecesse mais rápido, mais isso nunca te incomodou muito. Seria até engraçado. Seus planos mais ousados estavam ali, uma casa, um cachorro, uma família.Hoje não estão mais em lugar nenhum. Bem, não existe uma máquina do tempo a la Spielberg, mas se Deus, em sua infinita bondade lhe concedesse uma segunda chance seria o fim de uma tortura diária, que dura apenas cinco minutos, que é o tempo que você se permite assumir que o ontem é incomparavelmente melhor do que o hoje. Fora isso, é claro, você se sente mais bonita, desejada, cobiçada. Já se acostumou a prostituir seus sentimentos e até que não é tão difícil se mostrar apaixonada por todos os pares de calça que lhe despertam algum interesse. Se especializou em frases de efeito, em SMS carinhosos, em declarações via facebook.Devo admitir, você é muito boa nisso, por pouco não convence a si mesma. A agenda cheia do celular proporciona convites para cinema, teatro, bares e quartos espelhados. É, não é mal. Ao menos não na hora, até diverte. Depois é o depois.Bem,você não fica a se lamentar e isso é bom. Entendo a postura que você assume. Não teria como ser outra. Muitos ao lerem este texto dirão, diminuindo sua nobreza: " Princesa, coloque sua melhor roupa com aquela lingerie vermelha, solte seus cabelos e encare seus medos, abra seu coração, tente outra vez". O ser humano é simplista mesmo. Se o problema fosse homem, este seria substituído, como tantos antes foram e por tantas pessoas, em tantos lugares do mundo, em toda a história das relações homem x mulher. Natural. É a lógica da vida, dos sentimentos, dos amores. É amor até deixar de ser. E quando deixa de ser, surge outro. Intenso, forte, romântico, único, como todos os outros. A única coisa que ser perdeu lá, foi você mesma. E aquele monte de certezas que você tinha. E aquela vontade de abraçar o mundo e de ser feliz a qualquer preço. Aquele fim que norteava todos os seus esforços. Aquela identidade que você demorou mais de 30 anos pra construir e um acontecimento para destruí-la de vez. Um bem irrecuperável, uma perda total.